ENTREVISTA COM ALBANO PEDRO AO JORNAL VANGUARDA (Versão completa)
In Jornal Vanguarda. Edição n.º 116, do dia 26 de Abril de 2019
Como qualifica o
julgamento a sentença a burla à Tailandesa?
É importante ter em conta que o processo judicial ainda não terminou. Foi julgado numa das câmaras do Tribunal Supremo, correspondendo ao 1º nivel de jurisdição desse tribunal superior e segue, certamente, em recurso ao Plenário deste mesmo tribunal. O que corresponde a um 2º nível de jurisdição para o caso. É evidente que segue com menos réus, já que alguns foram absolvidos e outros, eventualmente, sem interesse em recorrer da pena aplicada. De forma resumida é um julgamento
pouco credível e uma sentença que acabou de corrigir os defeitos do processo
que levou ao julgamento. Tivemos um Ministério Público que andou muito mal,
instruiu muito mal o processo e as provas correspondentes. E isso mesmo o
Ministério Público conseguiu mostrar quando pediu absolvição de Norberto
Garcia. Ou seja, quando se pede absolvição depois da acusação num processo de
Querela é porque houve falhas na sua instrução, porque o Ministério Público só acusa
quando consegue ter provas mínimas de que o réu é culpado. Se depois da acusação decide
pedir absolvição significa que chegou a conclusão de que o réu era inocente. Se
o réu é inocente quer dizer que as provas eram falsas ou instruiu mal as mesmas
supondo que o inocente era culpado. É essa a grande contradição do Ministério
Público. O tribunal sim, acabou por corrigir esta tendência e aqui noto três
elementos para classificar como bom do que transpareceu com a leitura do
acórdão.
Que elementos são
esses?
Primeiro sentiu-se que a sentença
foi lavrada com algum cuidado técnico, os juízes conseguiram aplicar a doutrina
do Direito para sustentar as conclusões legais. O recurso à Doutrina é raro
entre os nossos juízes. O que demonstra que se fez alguma investigação cuidada.
A convolação que se deu ao crime de falsificação de documento, também é um
pormenor a ter em conta. Num primeiro momento Celeste de Brito foi acusada do
crime de falsificação de assinatura do documento, isso significa que ela era tida como quem
falsificou a assinatura do documento imputado ao Vice-Presidente da República, mas o tribunal
chegou a conclusão de que não existiam provas desse crime, porque não se provou
nenhuma actividade em que ela terá falsificado a assinatura em causa. O que foi possível provar é que
ela foi portadora deste documento com a assinatura falsificada, que expediu o documento com assinatura falsificada ao empresário canadense, para convencê-lo ou montar o esquema da
burla. Portanto, o tribunal decidiu convolar o crime, é um termo técnico para
dizer que a acusação inicial foi alterada por uma outra, logo, já não veio
acusada de crime de falsificação mas do crime do uso de documentos falsos. É uma nota muito positiva.
Quer dizer o tribunal
esteve atento?
Isso significa que o tribunal
teve alguma atenção ao verificar isso, atenção esta que o Ministério Público
não teve. Uma terceira e última nota prende-se com a forma exaustiva como o
tribunal teve a fazer a leitura da sentença e anunciar cada um dos crimes ao
ponto de chamar atenção ao crime de tráfico de influência que é novo na nossa
realidade, nunca se julgou cá e que não havia referências de julgamentos ou
casos anteriores para serem usados no juízo. O tribunal preferiu não ser duro
na sentença porque existe um princípio em Direito Penal que defende que quando há dúvida sobre os factos deve-se decidir a favor do reu. É que traduz o brocardo latino "In dubio pro reu". O tribunal também esteve bem pelo facto de ter
alterado substancialmente o conteúdo do seu despacho de pronúncia que era
semelhante ao conteúdo da acusação do Ministério Público. O que esteve mal não
deixa de ser o pedido da absolvição de Norberto Garcia, não o pedido em si que
foi muito bom, mas a necessidade que teve em fazê-lo devido aos erros processuais
cometidos. A questão do eritreu é caricata. Ele era uma vítima que foi tomada
como réu. Não fazia parte do esquema de burla e foi também aliciado a alimentar
esse mesmo esquema. A sua acusação belisca a dignidade e a reputação do Ministério
Público. Eu não tenho dúvidas em dizer que estamos perante um Ministério
Público que prefere prender para investigar. E mais grave ainda, prefere
instruir provas com base no ouvir dizer, nas palavras faladas, do que ir atrás
de provas. Temos um Ministério Público que parece agir a moda da antiga DISA,
com o modus operandis dos serviços de
informação. O Ministério Público, e aqui arrola-se também o SIC, deve deixar de
constranger as liberdades dos cidadãos prendendo-os com bases em simples
denúncias, muitas vezes infundadas.
Mas o Ministério
Público já clarificou que não prende para investigar…
Mas as provas estão aí. Vemos na
prática pessoas a serem presas para depois se chegar a conclusão que não
cometeram nenhum crime. Logo, foram presas para investigar e ao se investigar
chegou-se a conclusão que não cometeram os crimes de que eram suspeitos. É o caso do empresário Eritreu que foi preso preventivamente e que afinal nem tinha cometido qualquer crime no caso Burla a Tailandesa, como já dissemos. Para
dizer que a prática está a desmentir as palavras dos próprios agentes do
Ministério Público que procuram defender a boa imagem da instituição. É uma
situação que nos torna inseguros. De repente começamos a ter sensação que
estamos perante uma instituição que periga a liberdade das pessoas, as nossas
liberdades fundamentais. A liberdade é um bem supremo que não pode ser violado,
a Constituição protege isso, temos que exigir que esta instituição se reformule
em homenagem ao Estado de Direito que estamos a construir.
A soltura de José Filomeno dos Santos e Augusto Tomás levantou acesos
debates sobre a velha problemática de excesso de prisão preventiva em Angola.
Que comentários se lhe oferece a fazer a volta do assunto?
No caso Zenu dos Santos ele foi mantido
até ao limite máximo do prazo da prisão preventiva e decidiu-se soltá-lo. No
caso de Augusto Tomás não tenho conhecimento de que esteja em situação de
excesso de prisão preventiva. O tempo é longo, mas o Ministério Público,
segundo a lei, tem a faculdade de prorrogar a prisão preventiva e é natural que
o prazo se estenda para além do esperado. A lei estabelece normas subtis que
dizem que havendo razões fundadas para prosseguir com a investigação mantendo a
condição carcerária do arguido o Ministério Público pode sempre estender o
prazo. O mais importante é que justifique a sua prorrogação, caso contrário a
prisão torna-se excessiva e consequentemente ilícita.
No caso Jean-Claude Bastos de Morais o mais importante foi a devolução
do dinheiro em detrimento da administração da Justiça?
O Ministério Público passou essa ideia
com a leitura pública do comunicado a imprensa. Mas não é o que a lei diz,
aliás, falando desta maneira passa-se a ideia de que roubar o Estado dá direito
a prémio, que afinal a dada altura as pessoas só precisam devolver e depois são
soltos, não sei se devolvem a totalidade porque até podem ficar com troco. É
evidente que o Ministério Público ao tomar esta decisão em que privilegia o
cidadão devido a uma suposta devolução, deu a entender a existência daquilo a que
chamamos ordens superiores, porque os agentes do Ministério Público sabem que
este não é o procedimento legal. A soltura de Jean-Claude Bastos de Morais poderia
dar-se de uma maneira muito mais simples, que era o Ministério Público dizer
que chegou a conclusão que não existem provas para manter Jean-Claude Bastos de
Morais sob acusação e sobretudo para continuar o processo-crime. Assim arquivava-se
o processo e mandavam-no em paz. O resto era dizer que ele é inocente. Simples
como isso.
E o Estado angolano
perderia o dinheiro…
Eu estou a dizer o que deveria
ser o procedimento normal do Ministério Público, se quisesse libertar Jean-Claude
Bastos de Morais. A lei prescreve como faculdade que se desista da acusação quando
as provas são insuficientes ou ausência de provas indiciárias. Nesse caso o
arguido pode ser solto. Este é o procedimento normal. O que é anormal é dizer
que o criminoso já devolveu o dinheiro e por isso está solto. Se devolveu é
porque provou que cometeu o crime, então não devia ser solto. Então, o
Ministério Público passou a ideia que soltou um criminoso na condição de ter
sido premiado pelos crimes que cometeu. É evidente que se Jean-Claude Bastos de
Morais era mesmo inocente, a soltura devia, ainda assim obedecer os trâmites
legais. Não colocamos em causa a necessidade de se recuperar dinheiro para se
libertar uma certa pessoa. A Lei de Branqueamento de Capitais e Financiamento
ao Terrorismo prevê a possibilidade de certos criminosos terem os crimes
patrimoniais “perdoados”, se reporem o que tiverem tomado para si ilicitamente.
Não é ainda a figura de delação premiada que já vigora no Brasil, mas a solução
da nossa lei é interessante. É que se o indivíduo decidir devolver o dinheiro
fica livre de ser acusado, há a possibilidade de se retirar a queixa feita
contra ele. Isso ocorre nos crimes económicos, em que estão em causa bens
patrimoniais. No caso de Jean-Claude Bastos de Morais ele não foi indiciado apenas
pelo crime económico, também o foi por associação criminosa, pelo tráfico de
influências. Em circunstâncias normais, e sendo mesmo suspeita de crimes, ele
estaria livre na parte dos dinheiros, mas manter-se-ia na cadeia pelos outros
crimes de que é acusado.
Falou de ordens
superiores na soltura de Jean-Claude Bastos de Morais. Está a contrariar o
Presidente da República que diz que ordem superior tem que ter rosto?
O Presidente disse a dada altura
que as ordens superiores acabaram, mas ironicamente tão logo disse que
acabaram, no dia seguinte voltaram, ressuscitaram, porque estão aí a vista. Há
ordens superiores e no caso do Ministério Público estão evidentes, quando vem
uma figura estranha dizer que as provas enfraqueceram, como se fosse um gelado
que se derretesse e desaparecesse completamente das nossas mãos, só posso
entender que é um argumento para ludibriar as pessoas. Torna-se evidente que
houve uma ordem no sentido de dar o dito pelo não dito. Para um homem dotado de
inteligência mínima, não é difícil chegar a essa conclusão. Percebe-se que há
ordens superiores no caso Jean-Claude Bastos de Morais que levou o Ministério
Público a libertá-lo sem justificação legal e na absolvição do Norberto Garcia,
em que o Ministério Público teve a convicção da prática do crime quando
acusou.
É evidente que o mais
importante é a devolução do dinheiro em detrimento da Justiça…
Não, não! O mais importante é o Estado
de direito, o Estado das liberdades, se nós não preservamos o Estado de direito
as nossas liberdades entram em perigo. Nós não podemos ter um Estado
que sacrifica o Direito por qualquer outro interesse, porque o Direito é o
critério da preservação da liberdade e a liberdade é o bem supremo de todos
nós. Nenhum ser humano pode aceitar que a sua liberdade seja sacrificada e o
único guarda-chuva que temos para isso é o Direito. Portanto, o Estado deve ser
zeloso em relação ao cumprimento do Direito. Isso é o que significa sermos um
Estado de supremacia constitucional e legal tal como prescreve o artigo 6º da
Constituição da República. Significa que nenhum acto ou comportamento social
deve estar fora da previsão constitucional ou da lei sob pena de perigar as liberdades
dos indivíduos. No caso de Jean-Claude Bastos de Morais era possível termos as
duas soluções, preservava-se o Direito saindo legalmente e recebiamos os dinheiros negociando a situação.
Teríamos o Direito preservado e o dinheiro devolvido. Acredito que o Ministério
Público tem especialistas capazes de dar uma solução legal a liberdade do
arguido suíço-angolano a troco da devolução dos dinheiros. Não se foi por este
caminho porque nós temos muita facilidade de violar o Direito, de banalizar a
justiça.
Como descreve o
desempenho da justiça neste novo paradigma político?
O desempenho da justiça não mudou,
é o mesmo. É mau. Há insuficiência de pessoal e meios de trabalhos que pioram ainda mais a situação. Os processos são lentos e levam muito tempo a julgar. As prisões preventivas são quase sempre arbitrárias, ou seja, não obedecem ao mínimo os critérios legais. Há excessos de prisão preventiva para muitos casos em que os próprios agentes do Ministério Público perdem o controlo da situação, por esquecimento ou simples incúria. Por vezes registam-se casos de individuos detidos pela polícia e que passam muito tempo em celas como se fossem presos. Para o acesso a justiça, os cidadãos que não têm dinheiro ainda são obrigados a pagar o atestado de pobreza e outros emolumentos para dar entrada de um processo no tribunal, nos casos de queixa as esquadras policiais ainda têm que pagar os transportes debaixo para cima para aturar o excesso de burocracia para serem atendidos pelos agentes de investigação criminal. Diz-se que têm direito ao patrocinio judiciário mas isso acaba sendo inútil diante dos custos que citei e muita gente desiste da justiça pública e prefere resolver os problemas pelos próprios meios. São alguns vícios antigos do nosso sistema de justiça. Em termos de governação, nós estamos perante uma situação em
que o comboio é o mesmo, mudou apenas o maquinista. Mas um comboio que mantém a
direcção ao mesmo precipício de sempre de que o povo vem alertando em alvoroço.
O futuro dos angolanos continua incerto, os níveis de desemprego vão sendo cada
vez mais altos. Nada melhorou económica ou socialmente. A única política
pública que está a ser implementada neste momento é o combate à corrupção, em
tudo resto não há novidade nenhuma!
A aposta na
agricultura não é estratégia inovadora?
A única estratégia inovadora que
conheço é o acordo com o FMI, tivemos agora um travão dado a compra dos aviões
da Boeing, isso é um bom sinal. Nisso digo que ainda bem que compramos uma
trela para controlar os apetites do enriquecimento fácil. Essa trela é o FMI.
Vai nos travar em muitos aspectos e ajudar a economia a melhorar de
comportamento. Infelizmente, o Executivo mantém o paradigma de uma economia
centralizada, continua caminhar sob a capa de um comunismo mal disfarçado. O
Estado continua a planificar a economia. Agora é o PRODESI. Para quê? É uma
repetição de planos antigos, qual é a diferença que existe entre o PRODESI de hoje
e o SEF dos anos 80? Talvez a única diferença seja o PRODESI não ter ainda
produzido qualquer resultado, mas os outros programas sabemos que foram
desastrosos. O que deve acontecer numa economia de mercado, todos sabem, não
faltam conselheiros para o Presidente da República e não faltam experiências,
existe o DUBAI e vários outros países que são casos de sucesso que podem ser aplicados
na nossa realidade. O que se passa com o Executivo é um verdadeiro improviso,
repetindo programas que não deram certo no passado. Falou de agricultura, o
Estado compra insumos agrícolas e oferece, mas porque que é que o camponês não
compra com base num crédito bancário? isso significa que continuamos com
programas de campanha de café ou algodão e a promover as cooperativas agrícolas
dos anos 70. Não mudou nada. O Estado continua a oferecer bens de produção ao sector
privado, e este não precisa da esmola do Estado. A relação do sector privado é
sempre com a banca comercial, nunca com o Estado, este, quando quer apoiar deve
usar a banca comercial, cria créditos bonificados através de protocolos com o
sector bancário para facilitar o crédito ao sector privado.
O investimento
estrageiro tem legislação bastante para ajudar a alavancar a economia do País?
Sobre a questão prefiro um
exemplo interessante. Na primeira visita do Presidente da República à Alemanha,
levou uma delegação de empresários nacionais dispostos a estabelecer parcerias.
Durante as conversações entre angolanos e alemães, estes colocaram duas
questões: a primeira era saber se tinham a possibilidade de ter acesso a terra
para construção de fábricas, o alemão não trabalha com dinheiro próprio, aliás,
em economia de mercado, o empresário não precisa ter dinheiro próprio, precisa de
ter um projecto viável, fazer diligências para conseguir financiamento. Eles
queriam ter garantias reais sobre os terreno, para em função das mesmas, irem
buscar financiamentos para investir em Angola. O que se queria saber é se era possível
legalizar um terreno em Angola. Foi dito que não é possível. A nossa
Constituição diz que a terra é propriedade originária do Estado. Nem os alemães
e nem os angolanos têm acesso a terra. Então, que garantia se vai ter para ir à
banca buscar financiamento? A segunda inquietação foi a exportação dos
rendimentos líquidos, que ao que se sabe não é possível neste momento. Não
houve respostas positivas para as duas questões e os alemães perderam interesse
em investir no País. Da para perceber o quão grave é a situação do investimento
estrangeiro?
Urge alterar a lei de
terras em Angola?
Esta é uma questão da
Constituição que deve ser revista com urgência, sabe quais são os países que consagram
a terra como propriedade originária do Estado? Todos os países comunistas. É
caso de Cuba, China, Vietname, Laos, Cambodja, Coreia do Norte, etc. Em Africa há raros casos de países manifestamente comunistas e um deles é a Eritreia, situado no corno da África. Aqui na África austral,
Angola e Moçambique partilham das mesmas soluções. São os únicos países da
região que continuam com esse paradigma e com uma Constituição dessa natureza
não temos como desenvolver a economia, porque a terra é a base de crescimento e
desenvolvimento de qualquer indivíduo. Cada um de nós se quiser ficar rico tem de
ter a terra. Outro problema da terra são os limites fronteiriços, Angola é dos
poucos países em África incluindo Moçambique cujas fronteiras são violáveis,
nós pensamos que para manter as fronteiras íntegras temos que meter polícias.
Não é assim que se protege a totalidade do território, senão metade da
população angolana vai ser destacada como Polícia de Guarda fronteira para tomar
conta da fronteira. Protege-se cedendo terra aos particulares, porque aquilo
que é meu não é a polícia que vai proteger, eu é que protejo. Foi isso que
aconteceu na África do Sul quando se deu a migração massiva dos zimbabueanos.
Quem protegeu a fronteira da invasão de estrangeiros foram os fazendeiros. No
passado a terra já foi propriedade dos particulares, as grandes fazendas tinham
proprietários, foi na era colonial. Mas depois deu-se a independência e surgiu a
ideia de tornar a terra na propriedade originária do Estado na base da opção comunista feita pelo MPLA. Portanto, essa
solução deve ser alterada.
Devido as urgências
que apontou, acha que a constituição pode ser alterada nos próximos momentos?
Não acredito. O MPLA sente-se bem
com a constituição em vigor. Reflecte bem a sua natureza centralista do poder.
Por isso é que a economia continuará estagnada enquanto a Assembleia Nacional for
dominada pelo partido maioritário. Portanto, se nós não mexermos no sistema
parlamentar e no sistema judicial nós não teremos seguramente um Estado nem de
Direito nem democrático. Os poderes do Presidente da República não são os mais
importantes, parecem importantes mas não são. Porque em circusntâncias normais não condicionam a aplicação das instituições de Direito e o exercício da Democracia que são os pilares da nossa organização política. No actual figurino
constitucional, o Presidente da República é um mero mandatário, mandatário da
Assembleia Nacional. Porém com muito poder concentrado que dá a tendência
presidencialista em que sentimos o Presidente da República a ter acesso a todos
os outros poderes por mera usurpação. A luz da Constituição a soberania reside
no povo e este é representado pelos órgãos soberanos aos quais deposita
confiança directa pelo voto ou por exercício directo do poder. Um órgão
político que não tem o mandato directo do povo não é soberano. Lendo e
interpretando a nossa Constituição, o PR não é órgão de soberania. Está numa
situação de ilicitude que deve ser corrigida. Neste aspecto, trata-se de uma
correcção pontual que deve acontecer para devolver a condição soberana ao PR.
Está a defender a
eleição directa do Presidente da República?
Sim, porque senão o PR está numa
condição de ilicitude, quem o votou? Nós votamos a Assembleia Nacional, votamos
para as eleições gerais e ele em combinação elege-se o cabeça-de-lista, no
fundo o primeiro deputado de cada uma dessas listas passa a ser automaticamente
o PR. Deveríamos ter tomado o exemplo sul-africano, que elege primeiro a
Assembleia Nacional e na Assembleia Nacional escolhe-se um dos deputados para
PR, portanto, há dois momentos, o povo elege os deputados e os deputados elegem
o PR. Mas fizemos um pacote único e põe-se em causa o que chamamos em Direito por base de legitimação que condiciona o exercicio lícito do cargo. Essa legitimação está viciada, há um vício da vontade que se verificou no momento do voto, ou seja, eu queria votar os deputados mas sou forçado a votar
o PR. Nós estamos numa situação em que o PR nesse momento, rigorosamente
falando do ponto de vista jurídico, não tem legitimidade para governar e os
seus actos são todos nulos, por não serem legítimos porque ele não tem a base
soberana.
Essa análise é
bastante dura…
Essa é a verdade para quem
interpreta claramente a Constituição, falo com responsabilidade e na qualidade
de constitucionalista. O artigo 3º da Constituição dispõe que a soberania
reside no povo que exerce através do voto (democracia representativa) ou através da
participação directa na vida pública (democracia participativa). Isto também
tem a ver com a discussão sobre os tribunais que são órgãos de soberania, mas na
verdade não são, diz-se que o são porque falam em nome do povo, a chamada soberania funcional, mas a questão dos tribunais é pacífica porque a sua
soberania decorre de outros órgãos, do parlamento ou do poder executivo. Pode-se falar em soberania indirecta, para justificar a sua institucionalização, embora ainda assim não estejamos completamente de acordo com essa forma de exercício soberano. Não é
o caso do PR na nossa Constituição. Este não tem uma base segura de legitimação
por falta de uma transmissão directa do poder pelo povo que é o soberano
original.
O que está a ser
menos conseguido no combate à corrupção?
O combate à corrupção é uma
história antiga em Angola, nos anos 80 tivemos o caso que ficou conhecido como processo
105, também conhecido como “processo camanga”. Não é novidade nenhuma. Mas o
combate à corrupção de hoje tem graves defeitos. Um deles é que os que participaram
do saque é que estão a combater a corrupção. É como se o diabo tivesse a combater
o próprio diabo. É uma condição em que se percebe que o combate à corrupção vai
fragilizar profundamente o próprio partido no poder, porque se for levado a
fundo todos, sem excepção, vão responder por crimes contra o património público.
Para mim este é o grande mal, porque não podemos ter um combate que periga a
estabilidade política. Sou de opinião que os indivíduos que têm empresas e
negócios constituídos com erário público, deviam ter um prazo de gestão de 10
anos durante o qual teriam de devolver, por meio de lucros, os dinheiros
obtidos ilicitamente. Caso fossem a falência acabariam sendo julgados por
gestão danosa e levados a cadeia. Essa condição, não só transformaria as
pessoas em verdadeiros empresários, como teria o mérito de ajudar a financiar o
próprio Estado. São algumas das soluções sustentáveis para um bom combate à
corrupção. Não vejo inteligência nenhuma em acabar com bancos comerciais,
porque foram constituídos por A ou B. São bancos que geraram empregos e têm
utentes. O problema desses bancos é que faltava dinheiros para elevarem os
fundos até um certo nível. Se fizermos uma boa avaliação financeira a todos os
bancos comerciais quantos estão em condições de se manterem? Só o Banco Postal
e Mais é que estão em situação de serem encerrados? Eu tenho dúvidas. O que se
passou é que o interesse público, que é o interesse das pessoas, não foi
preservado. Tal como o combate à corrupção está a ser feito deve parar, sob
pena de chegarmos a um ponto em que as pessoas que controlam as grandes
empresas e negócios vão sentir-se ameaçadas e acabarão por abandonar o País. Este
risco existe. Foi assim no processo 105 em que a dada altura percebeu-se que
afinal não eram apenas as pessoas acusadas, mas sim pessoas ligadas ao partido.
Teve que se arquivar o processo porque estava a pôr em causa a estabilidade
política, todos iriam a cadeia. A dada altura os acusados ora libertos que se
sentiram ameaçados, revoltaram-se e tomaram consigo os seus bens e
desapareceram do País. Eu tenho dito que o processo Camanga faliu este País, o
julgamento inconclusivo deu-se em 1985, pouco tempo depois o País começou a registar
uma crise económica notável e em 1988, ou seja 3 anos depois, foi lançado o SEF
(Saneamento Economico e Financeiro), estávamos diante de uma crise económica
que viria a forçar o MPLA a negociar a paz com a UNITA e a promover as eleições
multipartidárias de 1992.
Que visão tem sobre
evolução da democracia participativa em Angola quando olha para institucionalização
das eleições autárquicas em 2020?
As autarquias locais serão a
manifestação da democracia participativa, porque a nossa democracia é
representativa e participativa. Na Constituição de 2010 deixamos de ter a
possibilidade de ter democracia participativa, pela eleição de candidatos
independentes aos órgãos de soberania e esta passou a ser reservada apenas para
a eleição dos órgãos das autarquias locais, através de grupos que não fazem
parte dos partidos políticos. Com as eleições autárquicas que se avizinham estamos
a retomar a ideia da democracia participativa. É a via seguida pelos Estados
democráticos liberais de todo o mundo. Por um lado os órgãos centrais do poder
são regidos com base na democracia representativa e os órgãos do poder local na
base da democracia participativa, que é a gestão autónoma dos interesses
públicos pelas populações locais. Neste momento, na África Austral há apenas dois
países que não conseguiram implementar as autarquias de forma conclusiva.
Trata-se de Moçambique que entrou num processo faseado de autarquias que não
consegue concluir e Angola que ainda não as implementou. Todos os outros países
da África austral já implementaram as autarquias locais e estas funcionam.
As autarquias não
terão o financiamento do Estado. A partida, a participação de independentes
fica coarctada?
É uma forma desigual de partirmos
para o processo das eleições, porque os autarcas dos partidos políticos contarão
com a base eleitoral das suas formações políticas, do material de propaganda e
os outros vão em desvantagem. Mais grave do que isso é que o único gerador de
rendimentos é o Estado. Nós não temos uma economia robusta que cria uma
sociedade civil que auto financia as suas próprias actividades. Poucos empresários conseguem financiar,
logo, não me parece aceitável que indivíduos que não tenham fontes de
financiamento vão nessa condição. E mais. O fundamento do financiamento das
eleições está na preservação da soberania de qualquer influência estrangeira,
por isso é que se proíbem os partidos de serem financiados externamente. Se o
fundamento é esse porque que ao nível das autarquias não se mantém o
financiamento? Só no nível do poder central é que o poder está permeável? A
minha posição é uma: se o processo autárquico não é para ser financiado então
que se retire o financiamento dos partidos políticos nas eleições gerais ao
nível do poder central.
Dez anos é tempo
razoável para institucionalização em todo o território nacional?
Não é nada razoável, não pode
haver faseamento ou gradualismo geográfico nenhum. Para os que defendem a tese do gradualismo geográfico eu coloco uma questão: O que é que falhou nos países que implementaram simultaneamente as autarquias locais? E porque é que ainda assim tais paíse continuam a manter os territórios autarcizados? Haja honestidade na escolha das soluções! Uma outra questão interessante é essa: Quantos países no mundo
implementaram o gradualismo geográfico? O único país no continente africano de
que se conhece essa façanha é Moçambique, todos os outros institucionalizaram
as autarquias locais simultaneamente. Há países aqui a nossa volta que estão
até entre os melhores exemplos do mundo em colocar no âmbito do poder local as
autarquias e as autoridades tradicionais, é o caso Zâmbia, Zimbabué e a RDC. A Namíbia
tem um sistema de poder local autárquico muito bem estruturado e funcional.
Porque não vamos lá buscar o exemplo? O Congo Democrático tem autarquias em
todo território, diz-se que a RDC é problemático ao nível do poder central. Mas
ao nível autárquico a gestão é extraordinária. Na RDC o cidadão solicita
terreno ao nível da autarquia, em Kinshasa não há becos, não há bairros
desgraçados como temos aqui, porque as autarquias funcionam. Portanto, nós
temos exemplos em todos os países da África Austral em que as autarquias foram
lançadas simultaneamente e com êxito. Porque é que estamos atrás de Moçambique?
Para mim, seria bom que evitássemos a conversa do gradualismo geográfico a
avançássemos já com a implementação em todo o território nacional porque ainda
assim na região estaríamos atrasados tendo em conta que a maioria dos países já
autonomizou as províncias enquanto nós estamos apenas ao nível dos municípios.
Como encara a reforma
da Justiça e do Direito em Angola?
A nossa Constituição é uma das
piores do mundo, aquela que tem mais erros, e a reforma da justiça e do Direito
começa na própria Constituição. Erros de articulação e de lógica. Diz-se que o órgão de soberania mais importante de todos por derivação de funções é a
Assembleia Nacional, porque as pessoas votam primeiro o parlamento. Seria o
primeiro órgão a configurar na Constituição. Não pode começar com o Presidente
da República, isso é um erro de arrumação. Por exemplo não se oficializaram as
línguas faladas em Angola, porquê é que as línguas nacionais não constam da Constituição? Porque só o
Português? A Constituição Sul-africana, por exemplo, determina como línguas
oficiais o inglês, o africanês, o zulu, o xhosa, etc. Porque a moeda Kwanza não
está na Constituição? É um símbolo de soberania. Olhando a nossa Constituição
do ponto de vista topográfico, está cheio de relevos acidentados. Portanto, a
reforma do Direito e da Justiça passa pela revisão da constituição e das leis que
fazem um conjunto completamente desajustado. Aprovamos agora o Código Penal,
vai entrar em vigor, mas não foi aprovado o Código de Processo Penal, ou seja,
se foi renovado o Código Penal, também deveria ser renovado o Código de
Processo Penal. É como renovar o comboio e este andar numa linha férrea velha e
antiga. Nós temos problemas em quase todas as áreas do Direito, fora de uma
infinidade de leis em vigor que não podem ser aplicadas convenientemente por
falta dos respectivos regulamentos.
Há censura a
Constituição da República, na sua qualidade de constitucionalista, afinal o que
está mal na carta magna do País?
A Constituição cria muitas
contradições das quais selecciono duas: se nós estamos num Estado de direito e
democrático, diz-se erradamente Estado democrático e de direito, primeiro se aprova
o direito e através deste se pratica a democracia. Essa é a logica e não sei
porquê carga de água, os constitucionalistas angolanos inverteram as coisas? O
Direito faz-se nos tribunais, o nosso sistema judiciário é acéfalo, não tem
cabeça, por isso é que gera conflitos de jurisdição entre os tribunais
superiores. Há confusão sobre se é o Tribunal Constitucional que está acima
do Tribunal Supremo ou se é o contrário. Significa falta de vértice na pirâmide
judicial, porque o Tribunal Supremo que devia exercer a função de órgão de
jurisdição plena em relação aos restantes tribunais superiores, não exerce essa
função e em consequência a justiça torna-se permeável porque qualquer tribunal
superior decide superiormente. Se o Tribunal Constitucional toma uma decisão
final não há recurso possível ao Tribunal Supremo e fica assim. No final do dia
quem paga é o cidadão que não vê a justiça realizada.
Está a referir-se ao
acórdão do TC que proíbe a fiscalização aos actos do Executivo?
Temos este caso e a questão mais
recente da CASA-CE em que se tomou uma decisão completamente injusta que está a
desestruturar a coligação, quando o Tribunal Supremo que teria a última palavra
não pode intervir, porque o Tribunal Constitucional esgotou a jurisdição. É uma anomalia grave no funcionamento do sistema de justiça. O Tribunal Supremo deve ter a ultima palavra nesses casos. Chama-se
Supremo porque é o tribunal que está no topo da pirâmide judicial. No sistema anglófono
diz-se corte suprema (Supreme Court) por estar acima das cortes altas (High
Court) ou tribunais superiores. O Tribunal Supremo deve ter o poder de anular a
decisão de qualquer tribunal superior, incluindo o Tribunal Constitucional. Por
isso é que temos o recurso extraordinários de cassação, de revisão de sentença ou de uniformização de jurisprudência. São recursos que se intentam ao Tribunal Supremo sempre que qualquer tribunal superior toma uma decisão que
viola gravemente a justiça ou o direito dos particulares, decida de forma contrária aos factos ocorridos ou ponha em causa o contéudo de um outro acórdão que tenha feito caso julgado vigorando como fonte de Direito pela via jurisprudencial. O problema é que a própria
Constituição não diz qual é o tribunal de jurisdição plena entre os tribunais superiores. Coloca-os todos num plano de hierarquia horizontal. A segunda contradição tem a ver com a democracia que é feita no parlamento. O
exercício democrático assenta no contraditório, ou seja, o contraditório gera
consensos, este, não pode vir de acordo entre as partes. O consenso gerado pelos acordos extra-parlamentar entre os partidos políticos representa quase sempre traição ao eleitorado, porque este vota os partidos pela diferença de programas e não pela necessidade de acertarem agendas políticas. Portanto, o consenso democaticamente viavél tem que ser gerado pela
contradição dos programas partidários e isso só é possível em sistemas de
parlamentos bicamerais (de duas câmaras). No sistema de uma única câmara como é
o nosso que só tem uma Assembleia Nacional, não é possível haver consensos
gerados através da disputa parlamentar. O que acontece é uma ditadura
parlamentar porque o partido maioritário decide sem levar em conta o voto de
todos os outros. Esse tipo parlamento prospera sobretudo em países comunistas,
como Cuba, China, Vietname, Laos, Coreia do Norte. Curiosamente, na África
Austral só existe dois países com uma única câmara parlamentar: Angola e Moçambique.
Todos os outros são de duas câmaras. É hora de termos um Senado (câmara Alta) e
uma Assembleia Nacional (câmara baixa) para equilibrar os interesses políticos
no parlamento e fazermos democracia. Se a Assembleia Nacional é dominada pelo
partido maioritário, o Senado não é dominado por representantes de partidos
políticos, resultam de eleições independentes. Nesses sistemas parlamentares, quando
se toma uma decisão pela união das duas câmaras o partido maioritário fica
obrigado a negociar com as outras forças representadas no parlamento. É desse
consenso que precisa a nossa democracia.
Depois da polémica ao
concurso na saúde e na educação, permanentemente a lisura e transparência dos
concursos públicos é colocada em xeque, ao ponto do Presidente da República,
por exemplo, anular o concurso público internacional que licenciara o 4º
operador de telecomunicações?
Ainda bem que o Presidente da
Republica anulou o concurso. Anulou o que devia ser meramente declarado nulo,
porque já não era válido e eficaz antes de ser anulado, no mundo jurídico o acto de anulação sobre actos feridos de nulidade absoluta é uma
aberração. Mas é uma questão técnica que não interessa a sociedade. O efeito
político da medida é que interessa. O PR recuperou alguma simpatia e
popularidade ao anular o concurso que já tinha muitos vícios e indiciava
corrupção. Mas ficam questões por responder. Por exemplo, porque é que de
seguida não exonerou o Ministro das Telecomunicações se afinal este agiu sem a
sua autorização?
O Presidente deve
ficar-se na anulação do concurso ou os implicados devem ser responsabilizados?
De acordo com a nossa
Constituição os actos praticados pelo Ministro das Telecomunicações
responsabilizam directamente o PR. Na qualidade de Titular do Poder Executivo
ele conta com ministros que são meros auxiliares e sem responsabilidade
política nenhuma sobre os actos que praticam. Isso quer dizer que quem responde
pelos actos de todos os membros do “governo” é o próprio PR porque parte-se do
princípio que é ele que autoriza a prática todos e quaisquer actos dos ministros,
governadores, administradores municipais, etc., no exercício das suas funções.
É como um enorme polvo que lança tentáculos em todo o sistema de administração
pública. Na relação interna de governação, nada impede que atribua a prática do
acto directamente ao seu próprio auxiliar que o desobedeceu exonerando-o. Para
já, se a TELSTAR fosse uma empresa séria e efectivamente lesada teria instaurado um processo judicial exigindo indemnização contra o Estado angolano.
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