SALIF KEITA: A DÁDIVA NEGRA DE UMA VOZ DE OURO

Em 1977, Salif Keita recebeu o prémio National Order da Guiné Conakry, Ahmed Sekou Touré. Em 1984 Salif Keita mudou-se para Paris. Ao longo da sua rica e suave carreira musical é fácil descobrir os temas que fazem a marca do cantor. Alguns deles que identificam facilmente Salif Keita como Yamore, Iniaglege, Katolon, Souvent, Moussolou, Ana Na Ming e Here são verdadeiros monumentos em homenagem a sua fluida inspiração e aprimorada técnica musical.

No Álbum MAFFOU podem ser encontrados todos estes temas. O que nos permite a ousadia de ver e perceber o período de amadurecimento de Salif Keita, em que o retorno as raízes o separam entre a fase da acomodação nas bandas musicais que fizeram a sua fama mundial e a carreira a solo. Em YAMORE Salif Keita é emblemático quanto a mestria que dele se exige. Faz questão de rechear a sua melodia com a voz mágica e cativante da dama dos pés descalços (Cesária Évora) que empresta o seu crioulo cabo-verdiano a poesia romântica elaborada em Mandinga por um Salif Keita perdido em lágrimas em busca da sua amada. A combinação das duas vozes é do melhor que se pode conseguir para homenagear a longa carreira musical deste cantor. O que transforma este tema num verdadeiro cartão de visitas para quem entra em contacto com a música de Salif Keita. A marcha é suavizada por uma lentidão sequestradora, entrecortada por uma salada instrumental bem cadenciada, onde a estética sonora e a métrica musical reforçam a beleza da letra que pontifica a voz melódica de Salif Keita. 

Em INIAGLEGE a guitarra solo surge ostensiva. Ela soletra as notas musicais ao ouvido. Oferece a oportunidade de se ter a noção da duração do tempo de cada nota permitindo uma exposição de talentos numa infinidade de segundos até dar lugar a voz seca e solitária de Salif Keita. Daí em diante a combinação da voz e da guitarra revelam uma espantosa capacidade e uma patente experiência na vivência instrumental com a música de um Salif Keita maduro e convincente. Não há coros nem andamentos rápidos. Durante a curta-longa peregrinação sonoplástica Salif Keita desabafa com a combinação dos instrumentos que ele próprio aprecia e vivência com a alma até deixar-se desmaiar no fim contra a nossa visível vontade numa altura em que não se quer largar os braços sonoros do cantor. 

Com KATOLON, Salif Keita se apresenta como um verdadeiro griot. O kora se insurge com a mesma autoridade em que acompanha os griots. Salif keita, está preocupado em desabafar e com a voz suplicante conta uma história sem pressa. Fala mais e solicita a companhia da sua destreza em manipular os sons. Os recursos líricos fluem suavemente da combinação habitual entre instrumentos tradicionais e modernos onde o coro feminino e o tempo musical fazem uma paisagem lírica extraordinariamente bela. 

MOUSSULOU é um monumento de sonoplastia instrumental de grande labor estético em que um coral feminino apela a alma de um Salif Keita cauteloso quase perdido em lamentações. Um conto ou uma história a medida do modelo griot de anunciar as vivências do seu tempo. MCK, rapper angolano, que nos honra internacionalmente com o seu underground, fez recursos a essa melodia para tema sonoro de fundo para uma das suas letras. A melodia é de uma cadência de alternância curta e contínua porém suave e ritmada. 

SOUVENT é seguramente o tema mais cauteloso produzido por Salif Keita. Parece um poema trovado com um Kora intermitente que teima em forrar um sofrimento infelizmente ostensivo. É um tema muito curto e o que encanta nesta muito bem conseguida música fortemente melódica é o modo como Salif Keita nos leva ao fim dela com ao ritmo arrebatador do Kora como querendo levar-nos para um embalo cavalgante ao infinito que desaparece no horizonte através do ouvido. Aliás, Salif Keita como todos os bons mestres que combinam uma voz mágica e uma incontestável capacidade de explorar os instrumentos musicais procura um diálogo interessante em que a voz dá lugar a uma peregrinação instrumental de uma arte refinada. 

ANA NA MING é de uma força sonora evocativa capaz de ressuscitar sensações fortes. Mesmo sem entender a letra percebemos uma Salif Keita a lamentar de alguma sorte que nos identifica a todos com mágoa e tristeza. Aliás, a musicalidade de Salif Keita fala da mesma maneira para qualquer um sem tradução linguística ou idiomática. HERE começa com um chamamento sonoro produzido por uma guitarra solo bastante autoritária que se isola no ouvido até dar lugar a cadência ritmada de uma mistura instrumental que faz lembrar o Kora e alguns outros instrumentos em execução ao mesmo tempo que se impõe um coro feminino melódico. Salif Keita segue a substituir o coro em companhia ritmada da mesma cadência suave do Kora. 

Um ano antes Salif Keita lançara SOSIE onde se percebe a intenção de mostrar ao mundo a sua competência musical. E de facto, foi a razão que o levara a emigrar para Paris. Grafa os títulos dos temas em francês. É ousado na estilística. Mas percebe depois que não era necessário lutar pelo nome. Este já se tinha afirmado por si só. Tinha marcado uma personalidade própria que a própria alma exigia como marca. Reflecte uma musicografia que o revela a si e a sua história. 

Regressa espiritualmente à terra natal. Esquece a necessidade da fama mundial, faz-se griot e com MAFFOU Salif Keita está de volta àquele período solitário em que tem que dar com a sorte de ser albino com todos os ingredientes anti-sociais que envolveram a sua história pessoal desde a infância. Salif keita percebe que nunca devia fugir a sua própria história para se refugiar na música e na peregrinação pelo mundo. Inspira fundo e decide enfrentá-la finalmente. Procura justificações sem resposta e apela pela necessidade de se refugiar no amor e na solidariedade. Acima de tudo Salif Keita faz uma busca sôfrega pela harmonia e pela paz para uma alma atormentada. 

Por isso Salif Keita não canta para o público. Antes, dialoga insistentemente consigo mesmo com o testemunho da destreza que liberta através dos instrumentos e faz um momento musical para além da sua própria realidade. Assim se percebe que MAFFOU revele um momento musical sublime, e por isso transcendente, em toda a carreira artística de Salif Keita.
(in: www.massungakota.blogspot.com )

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